da fé
para Aline
Lembro-me de algo que me ocorreu quando era criança. Tinha 4 anos e fui à igreja com minha mãe. Sentava quietinho no banco de madeira marrom-avermelhada, talhada com o esmero do único artesão-marceneiro da cidade, o seu Luís (esse, me ensinou preciosidades sobre a alma das árvores). Mamãe orava, não sei se agradecia por alguma promessa ou se fazia pedidos. Eu olhava, não sabia rezar. Olhava tanto que doía os olhos de quem resolveu levar os óculos escuros de plástico comprado na feirinha do centro da cidade. Nessa época, não usava óculos, mas já tinha vocação para tanto, ou me sentia inclinado a filtrar o que via. Não entendia muito o que era uma igreja: em minha imaginação, não cabia tanto brilho, tetos tão distantes do chão, milhares de bancos de madeira e nenhuma rede - ora, não era a igreja casa de deus? - ou quintal, ou árvore, ou gente brincando, mas eu gostava da cruz, do silêncio, da luz amarelada, do friozinho escuro das câmaras, de usar uma camisetinha que mamãe escolhia - quando botava o pé prá fora da igreja, arrancava-a ligeiro, prá alcançar o dia, antes que ele acabasse. Nesse dia, eu consegui ver pela primeira vez que da imagem do santo pendurado de braços abertos com uma coroa de espinhos na cabeça, vertia sangue, que singrava no corpo humilde e magro, despossuído e remoto na sua imobilidade. Doía. Doía um pranto de alma. Assim eu mapeava o cenário deslumbrado, sem convenção de olhar, sem origem nem destino. Ao lado, um altarzinho singelo de anjos, modelados em argila, uns entreolhando-se, outros ensaiando sons de trombeta e um, de asas pequenas, desproporcionais, me direcionava os olhos. e toda vez que eu percorria os seus companheiros, ele continuava olhando para mim. Eu parei para recebê-lo, percebê-lo em sua inteireza. Mas só conseguia mirar o olhar melancólico e doce desse anjo. E ele desceu do altar, trôpego como quem não sai do lugar há anos, e veio a mim: espectral, cheio de nuvens ao redor, pasmaceiro e delirante, estancou no banco da frente, sem pousar. Mamãe, olha o anjo, olha o anjo aí na frente. Mas não, só silêncio e preces. Ele falava baixo, sublimando nos lábios bem recortados: ´és alado como eu, mas tens uma asa quebrada.... e teu desígnio (que era isso, afinal?) é consertá-la`. Dançou seu vôo de regresso ao mesmo lugar, com precisão de anjo e nunca mais olhou prá mim. E olha que eu procurava os seus olhos, mas eles já estavam demasiadamente distantes.
Com 14 anos, já no Rio de Janeiro, consultando um doutor especialista em ortopedia (é, eu tinha os pés tortos, pisava prá dentro e já fazia anos que as botas me vestiam), caí da maca (por atropelo desassossegado, sou distraído mesmo). Ajudava-me a levantar e deu-me um tapinha nas costas. Estranhou um pouco. Pediu prá tirar a camiseta. De onde vem esse osso? – só o tinha, saliente, no lado direito.
Fé? Poderia dizer-te muitas coisas ponderadas nesses anos de peregrinação. Mas a fé é muito mais simples e ancestral do que os nossos pensamentos e conclusões. Talvez isso não lhe sirva de nada, nem tenha importância direta para a vida de ninguém, mas toda vez que me perguntam sobre a fé, me vem essa recordação.
25.out/04
Nenhum comentário:
Postar um comentário