a difícil arte, por luiz paulo baravelli
Tenho 52 anos, uso óculos e, como alguém descreveu, estou mais para baixo do que para alto, mais para gordo do que para magro. Tenho cabelos grisalhos, cortados curto e penteados de lado. Minha roupa de sair é uma calça cinza, uma camisa polo escura e sapatos de couro. Minha mulher e eu estamos casados há 27 anos e temos três filhos. Moramos em uma casa grande e confortável na Granja Viana. Tenho uma pequena eczema no peito e tomo remédios para pressão alta. Temos dois carros: um Galaxie e uma Caravan. Barulho e agitação me incomodam e meu gosto musical está em algum lugar entre Ravel e John Coltrane. Sou esta coisa inimaginável para o leitor da GENERAL: um adulto. Minha profissão: artista plástico.
Bom, acontece que os editores me pediram para escrever uma página todo mês. A página será, em princípio, sobre arte. O que eles estão pensando não sei bem, parece uma manobra insidiosa para tornar a revista mais difícil (problematizar, como dizem os pedantes, mas prometo nunca escrever desse jeito). Tanto a arte como a ciência partem do princípio que as coisas não são o que parecem: aquela areinha inofensiva da praia pode ser na verdade minério de urânio e, se tratada (de um jeito difícil), pode virar o centro de uma bomba atômica. Assim também o simples ato de pegar um lápis e um papel e desenhar a paisagem que se vê da janela pode ser a porta de entrada de uma complicação dos diabos. Os motivos para enfrentar estas complicações (o desenho e a bomba) são fáceis de serem entendidos: vontade de procurar encrenca. Mas, como se diz, se você tem de perguntar o por que, não vai entender a resposta.
Entre todas as dificuldades dessa complicação a primeira é que este desenho despretencioso é uma coisa única, irreproduzível. O mesmo desenho, feito amanhã, já é outra coisa. Folheio uns números anteriores da GENERAL e quase tudo o que vejo gira em torno dos produtos da indústria cultural. Discos, livros, vídeos, filmes, moda, tudo é feito aos milhares e todas as cópias são conceitualmente iguais. As músicas, escritos, imagens etc são ensaiados à exaustão e feitos especialmente para serem reproduzidos. São atividades onde o erro pode sumir, onde o espectador vê a ponta de um iceberg de cálculo e manipulação. Tente apagar uma linha errada do seu desenho: é impossível e vai ver que todo mundo morre de medo de desenhar porque tem medo do medo irreversível – o medo da morte, no fundo. Só desenham bem as crianças pequenas, que acham que não vão morrer nunca e os adultos que conseguiram conviver com essa idéia. Acho que você começa a crescer quando admite que vai morrer um dia e vira adulto quando essa noção é presente o tempo todo mas pára de doer. Consumir os produtos da indústria cultural é viver num eterno presente e numa infância perene. Ninguém sobrevive vendendo infelicidade, mas a arte não está vendendo nada; ela, como a filosofia ou a matemática, fica lá e você, se quiser (e com muito esforço) chega lá. Estamos tão acostumados a que nos ofereçam coisas prontas que a simples idéia de que existe algo que requer esforço e não está nem aí para nós, abre um espécie de vácuo à nossa frente. Tentar enxergar alguma coisa nesse vácuo é o que fico fazendo o dia inteiro.
Em tempo: na minha biografia, esqueci de dizer que nasci na Vila Mariana. É difícil, realmente.
— Luiz Paulo Baravelli, Revista General (93)
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sobre o texto
Encontrei este texto entre os escombros da faxina que fiz em casa na última semana. Um texto iluminado do Luiz Paulo Baravelli, que guardei avulso da extinta revista que o continha, a General (1993), feita por dissidentes da antiga Bizz, como o Forastieri, o C. E. Miranda e repleta de contribuições de gente como o Massari e o Baravelli, exaltando o complexo caldo cultural que fermenta a nossa história. Esse texto continua sendo um bálsamo no meio de tanta efemeridade, um guia reconfortante quando o cotidiano nos assola com seus inevitáveis temores.
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4 comentários:
faxinas são divertidas pela bagunça de encontrar coisas velhas, que deviam estar guardadas por algum motivo.
esse texto é ótimo e esta frase em especial eu vou guardar para mim:
"Estamos tão acostumados a que nos ofereçam coisas prontas que a simples idéia de que existe algo que requer esforço e não está nem aí para nós, abre uma espécie de vácuo à nossa frente."
pois é, encontrar pérolas como essa ajudam-nos a lembrar o caminho que um dia escolhemos e que, de tanto nos desalentarmos com as pedras que nele residem, perdemos de vista o encantamento inicial, tão indispensável para continuarmos em frente.
mas eu acho lindo encontrar coisas que requeiram esforço mental. que querem dizer mais do que o imediato. pq a alegria da descoberta, da compreensão vale mais do que a preguiça.
que bom que não estamos sós! que a maturidade também ajuda nessa senda de descobrir, se encantar, desvestir-se das ilusões iniciais e de conseguir motivar-se pelo caminho, pelo cultivo diário que nutrimos a esses jardins imaginários.
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