03 outubro 2007

a criação, por antoine de saint-exupèry



(...)


"Eu vi dançarinas comporem as suas danças. E a dança, uma vez criada e dançada, não serve para converter em provisões. Ninguém pode ficar com o fruto desse trabalho. A dança passa como um incêndio. E, no entanto, eu considero civilizado o povo que compõe as suas danças, muito embora não haja para as danças nem colheita nem celeiros. Ao passo que chamo bruto ao povo que alinha nas prateleiras objetos nascidos do trabalho de outrem, por muito finos que sejam e por muita capacidade que esse povo revele para se inebriar com a perfeição deles."

— Homem — dizia meu pai — é em primeiro lugar aquele que cria. E só são seus irmãos os homens que colaboram. E só se pode dizer que vivem aqueles que não encontraram a paz nas provisões arrecadadas.

Um dia levantaram-lhe uma objeção.

— A que é que tu chamas criar? Porque, se se trata de uma invenção de certa importância, poucos serão capazes disso. Então, falas só para alguns.... e os outros?

Meu pai respondeu-lhes:

— Criar é talvez falhar em determinado passo na dança. É dar ao viés este golpe de cinzel na pedra. O destino do gesto pouco importa. Esse esforço parece-te estéril a ti, cego, que tens o nariz esborrachado contra ele, mas experimenta dar um passo para trás. Considera de mais longe o movimento deste bairro da cidade. Só vês subir de lá um grande fervor e a poeira dourada do trabalho. E não reparas nos gestos falhados. Porque este povo debruçado sobre a obra, bem ou mal, lá vai edificando os palácios ou as cisternas ou os grandes jardins suspensos. As obras nascem-lhes como que necessariamente, do encantamento dos dedos. E eu te afianço que elas nascem tanto daqueles que falham os gestos como daqueles que os acertam, porque tu não podes dividir o homem. Se salvas só os grandes escultores, ficas privado de grandes escultores. Ninguém cairia em escolher um ofício que desse tão poucas possibilidade de viver. O grande escultor nasce do terreno de maus escultores. Servem-lhe de degrau e são eles que o elevam. E a bela dança nasce do fervor com que se dança. E o fervor a dança exige que todos dancem, mesmo aqueles que dançam mal. A não ser assim, deixa de haver fervor e passa haver apenas academia petrificada e espetáculo sem significação.

"Não condenes os erros deles à maneira do historiados que julga uma era já concluída. Quem poderá censurar o cedro por não passar ainda de semente ou de caule ou de raminho que desponta enviesado? De erro em erro se erguerá a floresta de cedros que, nos dias de ventania, distribuirá o incenso das suas aves."

E meu pai dizia, para concluir:

— Eu já te disse. Erro de um, êxito de outro, não te importes com estas divisões. A única coisa fértil é a colaboração de um através de outro. E o gesto falhado serve o gesto que triunfa. E o gesto que triunfa denuncia o fim que prosseguiam quer esse ou aquele que falhou. Aquele que encontra a Deus, encontra-o para todos. Porque o meu império é semelhante a um templo que eu pedi aos homens. Convidei os homens a construírem-no. De maneira que é o templo deles. E o nascimento do templo extrai deles próprios a sua mais elevada significação. E eles inventam os dourados. E aquele que os procurava sem os conseguir também os inventa. Porque foi especialmente deste fervor que os novos dourados nasceram.

Dizia ele outra vez:

— Não queiras inventar um império onde tudo seja perfeito. O bom gosto é a virtude do guardião de museu. Se fores a desprezar o mau gosto, não terás nem pintura, nem dança, nem palácio, nem jardins. O trabalho da terra, que não é propriamente um trabalho asseado, dar-te-á medo. Virás assim a ficar privado dele, devido a esse teu vazio desejo de perfeição. Inventa um império onde tudo seja simplesmente fervoroso.


(...)


in Cidadela, cap. IX, de Antoine de Saint-Exupèry (1948)


Nenhum comentário: