13 outubro 2007

a compreensão e o trabalho




"Não há ascensão que não doa. Toda metamorfose faz sofrer. Não penetro neste música, se primeiro não sofri com ela. Porque ela não deve passar do próprio fruto do meu sofrimento. Não acredito naqueles que se rebolam nas provisões amontoadas por outrem. Não me parece que baste mergulhar os filhos dos homens no concerto e no poema e no discurso para lhes outorgar a felicidade e a grande bebedeira do amor. Porque o homem é realmente faculdade do amor, mas o é também de sofrimento. E de aborrecimento. E do rabugento mau humor de um céu chuvoso. E, mesmo para a gente capaz de saborear o poema, já só há alegria do poema, porque de outra maneira nunca se mostrariam tristes. Fechar-se-iam no poema e rejubilariam. E a humanidade se fecharia no poema e rejubilaria, sem ter mais nada para criar. Mas o homem está feito de tal maneira que só se regozija do que forma. Para saborear o poema, teve primeiro de fazer a ascenção dele. Da mesma maneira que a paisagem descoberta do cimo das montanhas se gasta depressa no coração e só tem sentido enquanto construção da fadiga, disposição dos músculos — uma vez recomposto e ávido de marcha, a mesma paisagem te faz bocejar e não tem mais nada para te entregar — assim se gasta o poema que não nasceu do teu esforço. O próprio poema de outrem não passa de fruto do teu esforço, da tua ascenção interior. Os celeiros só formam sedentários, desprovidos de categoria humana. Eu não disponho do amor como de uma reserva; o amor é, em primeiro lugar, exercício do coração. E não me admira nada que haja quem não compreenda a propriedade, o templo, o poema ou a música, quem, na sua presença, pergunte: vês neles alguma coisa mais do que confusão relativamente rica? Havia de me deixar dominar por isso? Esses se consideram a si próprios razoáveis, céticos e cheios de ironia, que não é a própria do homem mas do cancro. Um certo rosto não te dá o amor como quem dá um presente. Não á a paisagem que te faz sentir essa serenidade, mas sim a ascenção triunfal, a vitória sobre a montanha, a conquista do céu.

O mesmo se passa com o amor. A ilusão está em pensar que ele se encontra quando se aprende. Muito se engana quem vagueia pela vida para se fazer conquistar. Em breves períodos de febre, consegue sentir o tumulto do coração. Sonha constantemente com a grande febre que o há de abrasar para toda a vida. Mas, dada a mesquinhez do seu espírito e a pequenez da colina vencida, essa febre vem a reduzir-se à fraca vitória do seu coração.

Também não se pode repousar em amor que não se transforma de dia para dia, como o amor de mãe. Mas tu queres te sentar na tua gôndola e tornar-te canção de gondoleiro para toda a vida. Enganas-te redondamente. Tudo aquilo que não for ascenção ou passagem não tem sentido nenhum. E, se te dá para parar, só encontrarás aborrecimento, porque a paisagem já não tem mais nada para te ensinar. E repudiarás a mulher, quando eras tu que em primeiro lugar devias repudiar.

Nunca me impressionou o argumento do descrente nem do lógico: "Mostra-me a propriedade, o império ou Deus, porque eu vejo e toco as pedras e os materiais e acredito nas pedras e nos materiais que toco." Mas nunca eu pretendi instruí-lo pela revelação de um segredo bastante mesquinho para se poder formular. Da mesma maneira que não posso transportá-lo para a montanha, a fim de lhe revelar a verdade de uma paisagem que não será vitória para ele, nem posso fazer-lhe saborear esta música se ele não a tiver primeiro vencido. Vem ter comigo para ser ensinado sem esforço, como o outro procura uma mulher que deposite nele o amor. E isso não está na minha mão.

Eu pego nele e o fecho e o faço estudar, ciente de que o que é fácil é estéril por isso mesmo. Eu meço a envergadura do trabalho pela torção e pelo suor. Por isso mandei chamar os professores das minhas escolas: "Não vos enganeis. Confiei-vos os filhos dos homens, não para pesar mais tarde a soma dos conhecimentos que adquiriram mas para me regozijar pela qualidade da ascenção deles. Vocês bem podem fazer subir para uma liteira um dos vossos alunos e mostrar-lhes mil cumes de montanhas rodeados das mil paisagens respectivas. Ele não ficará conhecendo nenhuma delas verdadeiramente. E, depois, mil paisagens não passam de um grão de poeira na imensidade do mundo. Só me interessará aquele que tiver exercitado os músculos na ascenção de uma montanha, nem que ela seja a única. Assim se achará disponível para compreender muito melhor do que o outro, o vosso falso sábio, as mil paisagens mal ensinadas.

"E se eu quiser que aquele acolá desabroche para o exercício do amor, fundarei nele o amor pelo exercício da oração."

O erro deles provém de terem visto que aquele que se exercita no amor descobre o rosto que o abrasa. E eles acreditam na virtude do rosto. E que aquele que dominou o poema foi abrasado pelo poema, e eles acreditam na virtude do poema.

Mas eu te repito mais uma vez: quando eu digo "montanha", significo montanha para ti, que te arranhaste nos seus silvados, que emergiste nos seus precipícios, que suaste contra as suas pedras, que colheste as suas flores e depois respiraste a plenos pulmões no alto das suas cristas. Eu significo, mas não apreendo nada. E, quando eu digo "montanha" a um lojista gordo, não lhe transporto nada para o coração.

E não é pode ter morrido a eficácia do poema que já não há poemas. Ou por ter morrido a eficácia do rosto que deixou de haver amor. E a eficácia de Deus, que deixou de haver no coração do homem a extensão das terras aráveis, tomadas na sua noite, onde a charrua faria rebentar cedros e flores.



Porque eu perscrutei com verdadeira atenção as relações que intercedem entre os homens e vim a descobrir os perigos da inteligência, que acredita na linguagem que apreende. E as respostas nas disputas. Porque não é pela vida da linguagem que eu hei de transmitir o que em mim existe. O que existe em mim não há palavra que o diga. Eu só posso significar na medida em que tu já compreendes por outros caminhos que não a palavra. Pelo milagre do amor ou porque, por sermos filhos do mesmo Deus, tu te pareces comigo. De outra maneira, puxo pelos cabelos o mundo que se acha submerso em mim. E, ao acaso da minha inépcia, só mostro esses aspecto dele ou aquele outro, da mesma maneira que consigo significar menos mal que esta montanha é alta, ao passo que ela é um coisa completamente diferente. E eu a falar da majestade da noite quando se tem frio nas estrelas."



in Cidadela, 1948, cap. XXXV, de Antoine de Saint-Exupèry


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