04 junho 2007

erratas e erratões, por pablo neruda




Meu próximo livro entra e sai do prelo sem se decidir a me mostrar o rosto. Viu-se envolvido na antiga guerra das erratas. Este é o sangrento campo de batalha em que os livros de poesia começam a doer ao poeta. As erratas são cáries das linhas impressas, e doem em profundidade quando os versos tomam o ar frio da publicação.

Há erratas e erratões. As erratas escondem-se no bosque de consoantes e vogais, vestem-se de verde ou de gris, são difíceis de descobrir como insetos ou répteis armados de lancetas encobertos sob o céspede da tipografia. Os erratões, pelo contrário, não dissimulam seus dentes de roedores furibundos.

Em meu mencionado livro atacou-me um erratão bastante sanguinário. Onde digo el agua verde del idioma a máquina decompões e apareceu el agua verde del idiota. Senti a dentada na alma. Porque para mim, o idioma, o idioma espanhol, é um leito infinitamente povoado de gotas e de sílabas, é uma corrente irrefreável que desce das cordilheiras de Góngora até a linguagem popular dos cegos que cantam nas esquinas. Porém esse "idiota" que substitui "idioma" é como um sapato desaparelhado em meio às águas do rio.

O romance pode passar por cima dos travessos erros de composição e linotipia. Mas a poesia é sensível e tropeça nos lancinantes obstáculos. A poesia ressente-se amiúde do ruído das colherinhas de café, dos passos da gente que entra e sai, da risada inoportuna. O romance tem uma geografia mais montanhosa e subterrâneos onde se guardam trajes pré-históricos e equívocos artificiais.

Meu amicíssimo Manuel Altolaguirre, poeta gentil da Espanha, que imprimiu minha revista poética em Madrid, foi um impressos glorioso, com suas próprias mãos formava as caixas com estupendos caracteres budônicos. Manolito honrava a poesia com a sua e com suas mãos de arcanjo trabalhador. Traduziu e imprimiu com beleza singular o Adonais, de Shelley, elegia à morte do jovem Keats. Quanto fulgor irradiavam as estrofes áureas e esmaltinas do poema na majestosa tipografia que destacava cada palavra como se se estivesse refazendo no crisol.

Não obstante, Altolaguirre procriava erratas e erratões, e chegou ate a colocá-las no frontispício, onde forma percebidas depois de estarem os livros espalhados pelas livrarias. A ele, ao meu queridíssimo Altolaguirre, pertence aquela proeza no campo dos erros que passarei a contar. Porque se tratava de um tonitroante e melífluo rimador cubano, donairoso como ele só, para quem e em poquíssimos exemplares meu amigo imprimiu uma pequena obra tipográfica.

— Erros? — perguntou o poeta.

— Nenhum, por certo — respondeu Altolaguirre.

Mas, ao abrir-se o elegantíssimo impresso, descobriu-se que ali onde o versejador havia escrito: "Yo siento un fuego atroz que me devora", o impressor colocara seu erratão: "Yo siento un fuego atrás que me devora".

Donairoso autor e culpável impressor tomaram juntos uma lancha e sepultaram os exemplares em meio às águas da baía de Havana.

Não pude fazer o mesmo quando uma impressora, em meu Crepusculario, em vez de besos, lecho y pan, colocou besos, leche y pan. Muitas vezes vi traduzida a outros idiomas a erratíssima e esse milk me custava lágrimas. Porém a edição em espanhol, onde ela originalmente apareceu, era pirata e eu não pude dar com o editor para embarcarmos numa lancha e arrojar à baía o erratão.

Certas erratas do passado trazem-me a nostalgia de ruas e caminhos que não mais existem. Trata-se das que ainda se conservam nas reimpressões de meu livro Tentativa del hombre infinito.

Naquele tempo abolíamos, como agora se torna a fazer, sinais e pontuações. Queríamos, em nossa poesia, uma pureza irredutível, o mais apropriado à nudez do pensamento, ao íntimo trabalho da alma.

Assim, quando tive em minhas mãos as primeiras trovas daquele pequeno livro que D. Carlos Nascimento editava, divisei com prazer um cardume de erratas que palpitavam entre os meus versos. Em vez de corrigi-las devolvi as provas intactas a D. Carlos, que, espantado, me disse:

— Nenhuma errata?

— Há mas deixo-as — respondi com soberba.

Meu primeiro editor estava acostumado com minhas ousadias, que não lhe causavam grande efeito. Assim foi que com cético sorriso guardou nas algibeiras os versos e as erratas. Minha juventude achava nos funestos equívocos uma fonte espontânea que ajudava a minha criação estigmatizando-me os versos. Pensei até em publicar um livro em que cada palavra fosse errata ou erratão.

Já muito longe daquele romantismo, persigo-as agora com podão, inseticida e escopeta.

Mas sempre, emboscada numa estrofe, como atrás de uma mata, a errata ou erratão me mostrará suas orelhas.

Reconheçamos também os escritores que a brusca interrupção do erro alheio numa linha nos leva igualmente a uma verdade desconhecida: ao intestino da imprensa, às suas vísceras de ferro, às suas membranas, à sua gástrica negra. As erratas levam-no direto ao trabalho humano. Temos que descer de nosso castelo verbal e compreender o infinito labor que se escondeu debaixo de cada linha: os trabalhadores que desde Gutenberg continuam pertencendo ao exército que combate conosco.




Erratas e Erratões, in Para Nascer Nasci (1978), de Pablo Neruda


Nenhum comentário: