dizer e calar: o impronunciável a...
algumas palavras são impronunciáveis. outrora, quando tinha lá catorze, quinze anos, eu classificava de impronunciáveis palavras como 'inefável', 'coisificação', entre outras que ia encontrando pelos livros, sendo a primeira, a mais impronunciável de todas, porque eu desconhecia seu significado e, embora tivesse sempre um dicionário à mão, ficava obstado pelas dificuldades técnicas e desistia no meio da descrição. pensava na razão dos escritores utilizarem termos assim, que pudessem ser simplesmente descritos como 'aquilo que não se pode exprimir pela palavra' ou 'tornar um sujeito um objeto, coisa', evitando ruídos de comunicação e dificultosos caminhos de linguagem. seria para se gabarem das suas vastas erudições? ou haveria a necessidade de deixar mesmo a coisa obscura para os leitores, como um labirinto que prescinde da habilidade daqueles que atrevem-se a percorrer as sendas desconhecidas da etimologia? o que descobri com o passar dos anos, adentrando mais profundamente e com mais interesse o universo literário, é que certas palavras são como são, porque, sendo tudo na vida complexo e particular a um só tempo, não poderíamos viver reduzindo o encanto que a natureza das coisas e do homem possui como sua maior riqueza. que não haveria porque dizer 'aquilo que não se pode exprimir em palavras' apenas porque não se pode oralizar algo em determinado momento sob certas circunstâncias e rodeado de pensamentos que nos enredam nas mais improváveis divagações existenciais. é preciso, mais do que nunca, encontrar a palavra certa para dizer — com toda a imperfeição a que somos submetidos pela nossa natureza, que mais se aproxima daquilo que sentimos, percebemos e entendemos. isso sem ter de justificar os porquês e os porques. assim, ao longo dos anos, 'inefável' deixou de ser impronunciável — foi guardada com carinho no inventário particular de adjetivos — , 'coisificação' deixou de fazer parte dos meus maiores pesadelos e, de certa maneira, as coisas em si tornaram-se mais claras. era o amadurecimento? talvez. ou era tão somente os primeiros passos da longa vereda da vida? acho que é tudo isso e um pouco mais. mas, voltando ao assunto ali em cima anunciado, a noção do impronunciável ganhou outros contornos. aparece quando vejo o casal, sentado à beira da cama, discutindo a relação. quando a mãe, diante da travessura recém-cometida pelo filho pequeno, aponta-lhe os erros como um ditador aponta um caminho. quando alguém pede passagem em meio à multidão. quando a senhora da repartição pública insiste em fazer-nos retornar para casa para pegar aquele documento que faltava. ou simplesmente quando alguém sente algo por outro alguém e deixa-se tomar pelo medo. o medo do inefável. é, exatamente essa palavra que volta e meia teima em ganhar, dia a dia, dimensões jamais imaginadas pelo rapaz nos seus catorze, quinze anos. é nesse momento, em que tudo vêm à mente pelos olhos da alma, com uma claridade que nos eclipsa, que não conseguimos pronunciar a bendita palavra. a frase. o termo. a cola. aquilo que estava tão vivo dentro de nós. que nos queimava por dentro. que nos tira o sono tranqüilo. e a fome. e a falta. e tudo tanto quanto muito além. e além de tudo isso, mais. muito mais que a palavra, o sonho, a eternidade. aquela palavra um dia banalizada na telenovela. essa coisa simples e bonita. ou esse sentimento grande e universal. ou essa maneira de viver superando a dor e o medo. ou esse nome que lido ao contrário é o nome de um lugar bonito. ou aquela coisa que faltava na discussão do relacionamento. aquele sentido que faltou no ensinamento da mãe. aquela porta que a humanidade mantém cerrada a todo custo por medo de perder seus privilégios. aquele vazio que vira obrigação e se converte em malícia. ou maldade. ou tristeza. todos sabemos. é aquela coisa que não é coisa, que não se coisifica nem se sujeita, que não se prende, guarda e perde as chaves, que não se oculta no brilho dos olhos, mas que pulsa e descompassa os relógios e marcapassos, que tira dos trilhos o caminho mais objetivo e bem sinalizado, que muda o barulho do apito do trem e transforma as feições de quem aguarda sua chegada, que faz o tempo do tempo do tempo aproximar-se da eternidade. esse algo facilmente perdível e encontrável. esse sentimento tantas vezes impronunciado. essa palavra amor.
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