da criação, por kazantzakis
A criação, como o amor, é a perseguição cheia de incertezas e pulsações rápidas do coração. Cada manhã eu saía nesta perseguição mística, meu coração pulsando de angústia e curiosidade e com uma estranha e satânica arrogância que se parecia (não sei como nem porque) a uma profunda, indizível humildade. Pois que sem pensar nisto em absoluto, desde os primeiros dias, eu percebera qual era o pássaro invisível — talvez inexistente — que eu caçava. As montanhas estavam carregadas de perdizes, os desfiladeiros de pombas, e os lagos de patos selvagens. Mas eu, passando desdenhosamente por toda essa deliciosa carne esvoaçante, caçava o pássaro inatingível que de tempos em tempos eu ouvia bater suas asas em meu coração, no coração de todos os corações, o pássaro feito até agora somente de asas. Eu lutava por dar a este pássaro um corpo sólido para que eu pudesse pegá-lo.
— Quando o germe da odisséia se frutificou em mim (Testamento para El Greco), de Nikos Kazantzakis.
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Esse é um dos livros mais bonitos e iluminados que pude ler até hoje. Assim como a criação acima perseguida, também eu persegui essa obra por muitos anos, sem encontrá-la em lugar algum. De fato, é uma obra rara e pouco editada. Entre seus possíveis nomes, Carta a El Greco é a mais conhecida. A tradução que possuo ainda tem o encanto da interpretação de Clarice Lispector, um achado. Hoje, este exemplar sustenta-se apenas pela capa e pelos poucos fios que ainda restam intactos entremeando os cadernos e muitas folhas estão assim livres, a se perderem entre a eternidade das idéias e a precariedade das traças. Esse monumento à vida é tão simplesmente o relato da vida do autor, cuja mulher explica na introdução que ele, aos 74 anos pediu à Deus que lhe desse mais 10 anos de vida para que lhe fosse possível escrevê-la e, quando chegasse o dia de sua morte, dele restariam apenas as cinzas, simbólicas da desconstrução dos seus caminhos pelo mundo. E o que nos resta, é de uma beleza inexorável ao tempo.
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